2004-10-24

Monólogos perdidos

Num destes dias de semana, enquanto esperava o comboio que me iria levar a Lisboa, reparei num senhor que chegou meio esbaforido apesar de ainda faltar algum tempo para o comboio... a sua entrada captou o meu olhar e pelo canto do olho estive a estudá-lo. Foi então que percebi que ele não vinha cansado, vinha chateado. Estava a dizer entre dentes um discurso qualquer onde expressava vivamente o seu ponto de vista que pelos vistos era muito distante da opinião do seu interlocutor imaginário! Apesar de fazer um esforço por não vociferar corporalmente, a sua face contorcia-se a cada palavra debidata, os seus olhos reviravam-se em exasperação pura por não se fazer compreender!...
Pensava que era a única que tecia argumentos enormes, que se transformavam em diálogos imaginários quando me quero fazer entender por alguém que imagino que não me entenda. Desenho então mil alternativas que num instante se transformam em acesas discussões co o vazio no desespero de me fazer entender!...
Afinal, nos dias que correm, onde o relógio é o nosso ditador supremo e onde quase ninguém tem tempo para ouvir ou para se fazer ouvir, acabamos por ter monólogos intermináveis, muitas vezes frente a um público anónimo, porque de facto nós somos os interlocutores que nos percebemos e que compreendemos a nossa necessidade imensa de falar e de sermos entendidos!

No poupar é que está o ganho!

Este sábado ao colocar o lixo na rua, atrapalhei um senhor de idade que estava a vasculhar no lixo e que estava com umas calças de ganga na mão. Ao vê-lo quase que senti vontade de não ter que meter o lixo na rua, pois não estava certa de qual seria a maneira correcta de gerir o confronto... lá segui caminho e pedi licença para colocar o lixo no caixote.
O senhor virou-se para mim com a sua cara queimada do sol, com a pele bem vincada pelo passar dos anos com um sorriso aberto e com uns olhos de um azul tão limpído, tão fresco e tão franco que nunca poderiam esconder uma má vontade! Sorri-lhe de volta e dei um bom dia, naquele instante em que os nossos olhos se cruzaram foi como se o irreal da situação nem sequer existisse! Ele ganhou a dimensão da pessoa que sempre deveria ter e o facto de ter na mão umas calças resgatadas ao lixo não teve importância alguma! Respondeu-me ainda com o mesmo sorriso:
- No poupar é que está o ganho!




2004-10-14

Não tem maldade, pois não menina?

Pelo menos uma a duas vezes por ano, há um senhor peculiar que apanha o comboio na linha de cascais. Tenho ideia que é sempre no inicio do Outono e no inicio da Primavera...
Tem uma voz forte, sonora. Em cada viagem escolhe sempre uma carruagem e é aí que investe no seu número! Começa sempre por desejar bom dia a todos os presentes. Vai avançando na carruagem devagar, escolhendo as pessoas que vão ser alvo do seu repertório. Como já o vi algumas 3 ou 4 vezes já reparei que há sempre um troço comum num número que apresenta, mas o que interessa é que continua a ser uma composição vencedora!
Para os homens há sempre as piadas mais fortes, mais malandras. Para as senhoras os discursos mais poéticos, mais florais, sempre seguidos de um: "Não me leva a mal, pois não menina? Não é com maldade. Não tem maldade, pois não?".
E lá vai seguindo cumprimentando toda a gente carruagem a fora:

- Qual é a ultima coisa que tira, ao deitar? Nada?! Não tira nada ?! Tem a certeza? ai, não tira os pés do chão?

Ao chegar ao final da carruagem já está toda a gente a sorrir, se não estiver a rir.

Quando passa a mão a pedir dinheiro, quase toda a gente dá qualquer coisa sem o habitual ar de desdém! Afinal, que preço tem o nosso riso? O começar o dia bem disposto?

É claro que não tem maldade, tem encanto começar a manhã assim!