2007-03-23

Aprendiz de cobra

Conta-se que de um ovo nasceu
mas nem disso se apercebeu,
apenas estranhou
quando pelo chão rastejou.

E enquanto o tempo marcava o passo
mexia-se pelas semi-curvas do compasso,
sempre rasteiro ao chão
pelas batidas frias do coração.


A aprender a caçar começou
e a primeira presa apanhou
que no seu veneno depressa morreu
mas também isso não compreendeu.


Na primeira investida que falhou,
todo o seu corpo se pasmou
e no instante em que a língua mordeu
ainda abriu a boca quando pereceu!

2007-03-18

Saber filtrar a luz

O relógio marcava 14:30 de um dia desta semana, em que já cheira a primavera, descia pela avenida da liberdade, a uma hora em que já devia estar a trabalhar. Ver o céu azul de Lisboa, olhar para algumas fachadas de edifícios, deu-me vontade de ter a minha máquina fotográfica à mão e só o facto de pensar em fotografia, o que me lembrou de ti. O passear pelos canteiros, deu-me uma vontade irresistível de correr por eles, como se fosse criança, pelo simples facto de estar um dia bonito e não ter que estar fechada, no escritório e mais uma vez pensei na nossa conversa de precisarmos de quebrar com as coisas, de descansarmos do resto, fazendo algo diferente! E em parte, esse pedaço de lembrança, rasgou mais o meu sorriso!

Ao passar pelo Tivoli, o porteiro na sua fatiota janota, falou-me com um sorriso, penso que só pelo facto de ter passado por ele assim tão leve, enquanto motoristas esperavam à porta perto dos Mercedes, em fato escuro. Lá dentro, pelas janelas grandes vi senhores a terminar o almoço tranquilamente, alguns pegando no charuto ou cigarrilha com o ar de habitués, que me leva a pensar que para eles estar perto das três da tarde a falar tranquilamente ao fim de um almoço nada tem de extraordinário, ao contrário do que se passa comigo.

Mas são dias assim de luz, em que damos importância a estas pequenas coisas, que nos devem servir de barómetro para todas vezes em que são também coisas insignificantes que não nos deixam filtrar a luz, colocando-nos no escuro!

2007-03-11

Areia

Há dias em que acordo e como que vejo o meu dia a ser regido pela areia de percorre uma ampulheta… deixo-me hipnotizar por aquele correr suave, contínuo e tudo o resto deixa de existir, a própria areia toma conta do meu dia, marca a minha existência, até não ver mais nada. Transforma-se em terra, negra, escura, que me envolve como uma semente, perco o contacto comigo, chego a esquecer-me de mim como pessoa… deixo de ser, tudo pára, excepto, todo o tiquetaque associado ao marchar da ampulheta, aos grãos de terra que estão aqui ao meu lado, que me cobrem, que tudo tornam em noite. E de cada vez, é como se este mergulho fosse o primeiro, como se fosse a minha primeira viagem como semente!

Até ao momento em que após receber umas gotas de água reencontro o sol no céu azul, relembro o mar a brilhar à minha frente, e há uma altura em que me lembro que já aqui estive, que já saí da terra, que já havia entrado nela e sobretudo que o ar sempre foi assim tão intenso, tão meu e que nessa altura, como em todas as outras, a areia que ainda marca o tempo, está agora lá ao longe, apenas me lembra que amanhã é mais um dia para deixar o sol brilhar!

2007-03-06

O contra relógio dos nossos pequenos dramas

Como bons representantes da espécie humana, temos muitas vezes a tendência de fazer verdadeiras tempestades em copos de água, quando afinal o que queríamos beber mesmo era um copo de vinho! Mas há alturas em que de facto, parece que o universo começa a tecer uma trama à nossa volta, de tal forma retorcida, que nos parece vislumbrar um rasgado sorriso trocista enquanto todas as peças se conjugam para nos fazer dar mais uns pinotes a despropósito de coisa nenhuma!

De há uns dias a esta parte, da minha televisão resolveu começar a sofrer de uma "constipação" aguda. Só depois de algum aquecimento, conseguido por várias tentativas de ver televisão, quando a mesma resolve que não, e pelo aquecimento da sala ligado, mais por superstição que outra coisa, lá fica o raio do aparelho a funcionar todo contente, como se nada se passasse. E em todos aqueles intervalos em que temo que seja o raio da televisão dê afinal o raio do badagaio, lá vejo um orçamento a ser formulado na minha cabeça, com o deslocamento da marca a minha casa a engordá-lo, porque é impensável tentar mexer na minha televisão! Ora quando estamos a fazer contas para conseguir cumprir um dos nossos objectivos para 2007, que só se cumpre se o pagarmos, a última coisa que nos dá vontade é vermos a lista de menos na conta a aumentar para algo tão imbecil como uma televisão cansada!

E o meu lado “drama queen” vê logo tudo em fumo, como se a todo o momento pudesse perder o meu objectivo, como mais um dos pregos que me foi inculcado pela bela da culpa católica: o não direito a fazer algo por mim, sem ter de pagar uma factura gorda mais à frente!