2006-11-02

Os diferentes lados do comboio

Durante o verão e refugiando-me na desculpa de estar a fazer horários chanfrados, ia sempre (ou quase) de carro para Lisboa. É claro que o próprio facto de ir de carro potenciava as saídas fora de horas, mas quando se está no meio de um ciclo vicioso, por muito imbecil que o mesmo seja, nem sempre nos damos conta do mesmo.

Com a rentré, o aumento do caudal do trânsito, juntei a minha decisão de reconquistar o meu tempo, e voltei ao bom e velho comboio. Voltei a ter tempo de andar sempre com um livro atrás, a juntar música, quando há demasiados loucos com o botão de volume avariado à minha volta que me dificultam a progressão da imaginação enquanto leio. Confesso que já não me lembrava do gozo de andar “preocupada” em planear o próximo livro que vou ler, porque os vou despachando alegremente! É quase como andar alegremente entre mundos: o que vejo na cabeça enquanto vou no comboio e o outro que está à minha espera regido por relógios de pontos!

Hoje, ao sair, estava uma chuvinha jeitosa lá fora, luzes de travões em todo o lado e ao atravessar a rua, com o casaco fechado não pude deixar de sorrir enquanto me via já sentadinha no comboio com o livro aberto! E de facto, depois de ter feito um pouco de tempo na papelaria, já estava a ler o livro que comecei hoje mesmo. Não muito tempo depois, dos meus ouvidos quase estalarem e instintivamente, encolhi-me e quase saí do banco no reflexo de me baixar (o instinto é de facto uma coisa espantosa) um parvalhão qualquer no meio do percurso devia estar a jogar o vamos ver se acerto na janela do comboio com o calhau que tenho na mão! Nem me apercebi logo do que tinha sido, só quando saí da posição contraída, é que me apercebi que o vidro do outro lado do comboio estava completamente raiado como um sol a brilhar onde o centro era por certo o sítio onde a pedra bateu. Acho que se tenho estado daquele lado, ainda me tinha deitado no banco, à filme!

Troco de comboio e eis que tenho que optar pelos phones pois numa das pontas da carruagem está um velhote que mal se tem nas pernas e a julgar pelo enrolanço da língua já não estava sozinho e a mim não me apetecia estar a fazer um esforço extra para ajudar a minha imaginação no acompanhar das letras. Mas como tenho uma espécie de íman para os cromos difíceis da caderneta, foi exactamente a mim que o homem veio perguntar se estávamos na estação onde ele queria sair. É claro que fiquei intoxicada com os vapores que emanaram da boca dele e nem sem os phones e com toda a minha atenção, aquele articular de palavras começou a fazer sentido! Felizmente para ele, estava perto de mim alguém com o ouvido já treinado e eu lá consegui confirmar que sim, que podia sair! E lá saiu a gritar com meio mundo para que saíssem à sua frente a arrancar sorrisos a quem entrava e virava a cabeça para confirmar a cena! Chiça! Pelo menos agora, o livro volta a ser totalmente meu, enquanto o comboio continua a deslizar pelas estações indiferente ao piso molhado!

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